Educação e Estágio de Direito
- Renata Comunello
- 6 de mai. de 2021
- 8 min de leitura

Na semana passada, dia 28 de abril, foi o Dia Mundial da Educação.
Por ocasião da data refletia que, por meio do exercício da advocacia, há mais de vinte anos, estive, várias vezes, na posição de orientadora de estagiários do curso de Direito. Além disso, entendendo-me como sujeito de um processo de educação continuada na Área do Direito há mais de 27 anos, que envolveu a graduação, a participação, como discente, em três cursos de pós-graduação em nível de especialização e vários outros cursos de extensão e aperfeiçoamento profissional, é inevitável desenvolver um olhar mais acurado para os processos educativos que giram em torno do estágio de Direito.
Assim, pretendo aqui refletir um pouco em torno de questões estruturais que envolvem o desafio que cada advogado tem ao supervisionar um estagiário em um escritório de advocacia.
Considerando que, muitas vezes, o advogado não tem, de modo geral, nenhuma formação teórica ou profissional na área da educação, a dúvida sobre como deve se dar a dinâmica de relação entre o estagiário e o seu orientador na instituição profissional deve vir à mente de advogados, estagiários/estudantes e suas famílias, professores, bem como, potencialmente, deve ser uma preocupação das instituições educacionais e escritórios de advocacia.
Mas você pode estar se perguntando: a atividade desenvolvida em um estágio acadêmico em um escritório de advocacia (sociedade de advogados) faz parte, de fato, de um processo educativo?
Às questões acima, a legislação nacional, de forma independente da teoria pedagógica ou filosófica acerca dos papeis de cada um dos sujeitos da relação “estagiário” – “orientador de estágio profissional”, responde de forma clara, definindo, na Lei nº 11.788/2018, em seu art. 1º, o estágio como
“ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos[1].” (BRASIL, 2008)
Isso posto, a própria lei define como objetivo do estágio o “aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho”[2]
A Resolução nº 5/2018 da Câmara de Ensino Superior (CES), do Conselho Nacional de Educação (CNE), do Ministério da Educação (ME)[3], que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito define, de forma inequívoca, em seu art. 2º, III, que no Projeto Pedagógico de Curso (PPC) das Instituições de Ensino Superior (IES) de Graduação em Direito, deverá constar a prática jurídica. Em seu art. 5º, III, estabelece também que a formação pratico-profissional objetiva a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nas demais perspectivas formativas, especialmente nas atividades relacionadas com a prática jurídica e o Trabalho de Conclusão de Curso. O art. 6º, vai mais além e estabelece a prática jurídica com componente curricular obrigatório, indispensável à consolidação dos desempenhos profissionais desejados, inerentes ao perfil do formando, devendo cada instituição, por seus colegiados próprios, aprovar o correspondente regulamento, com suas diferentes modalidades de operacionalização. Complementa ainda, o mesmo art. 6º, no parágrafo terceiro, dizendo que a Prática Jurídica deverá ser coordenada pelo Núcleo de Práticas Jurídicas, podendo ser realizada, além de na própria Instituição de Educação Superior, entre outros, em escritórios e serviços de advocacia e consultorias jurídicas.
Segundo RAMALHO[4]:
“O Estudo do Direito tem que priorizar a transversalidade. O lema é promover a interdisciplinaridade como forma de ampliar a capacidade cognitiva do aluno, de dotá-lo dos conhecimentos e das experiências acadêmicas, vivenciando os estágios profissionais não mais apenas no sentido da advocacia, magistratura, promotoria ou defensoria pública, mas com aptidão e competência para exercer todas as atividades que o mundo moderno exige do profissional do Direito, em razão da diversidade de trabalho que as Ciências Jurídicas possibilitam nos tempos atuais, incluindo-se nessa realidade a expectativa para desempenhar com qualidade e competência a função docente no ensino jurídico, exigindo, como ocorre nas demais áreas, conhecimentos e habilidades complementares, a exemplo das conquistas cognitivas que tratam da questão do ensino e da educação.”
É dado de realidade que a imensa maioria Pedagógica ou em qualquer área da Educação e a atividade de orientador de estágio profissional, apesar de ser obrigatória em muitos currículos dos cursos de Direito, não lhes exige qualquer formação específica em matéria de saberes educacionais.
Neste contexto, é considerada, em nosso escritório, importante a elaboração de um PPPED (Projeto Político Pedagógico para Estágio de Direito) que tenha presente, como não poderia deixar de ser, as limitações epistemológicas do profissionais orientadores de estágio no que tange aos conceitos da ciência da educação para que este Projeto possa ser usado como guia pelos advogados que aceitem o desafio de orientar estagiários. A ideia é que o Projeto Político Pedagógico para Estágio de Direito possa ser um instrumento concreto para guiar o profissional orientador do estágio no entendimento do que se espera da sua colaboração no processo de aprendizagem do estagiário em direção à uma formação acadêmica jurídica de qualidade.
O conjunto de saberes necessários àquele que pretende ensinar (e, aqui, admitimos que o advogado orientador de estágio está fazendo as vezes de “professor” no momento em que está orientando o estagiário) é, superando a dicotomia epistemológica que os pode conceber como em gênese “mentais” ou “sociológicos”, um processo eminentemente social.
Em sendo um processo eminentemente social ou, em outras palavras, em estando intrinsecamente ligado à nossa espécie, muitas vezes, se desenvolve sem necessidade de nenhuma estruturação pedagógica ou estratégica formal entre orientador (e escritório de advocacia) e estabelecimento de ensino onde o estagiário está matriculado.
Não obstante, é sabido que qualquer atividade desenvolvida de forma consciente e estruturada tende a ser mais eficaz do que a desenvolvida de forma menos consciência e mais desestruturada.
Isso posto, reputamos importante que, ao menos cada curso de Direito, por exemplo, tenha seu PPP (Projeto Político Pedagógico) onde desenvolva a perspectiva, objetivos e estratégias próprias da formação pretendida através daquele curso de graduação o qual, integrado ao PDI (Plano de Desenvolvimento Institucional) da Universidade (se for o caso), configurará o alicerce de legitimação do caráter social do processo educativo ali desenvolvido.
De outro lado, não obstante o caráter social do processo de aprendizagem que se dá no ambiente de estágio, este requer, a espelho do que ocorre na instituição de ensino, de um Projeto que estabeleça, de forma conjunta com os atores deste específico processo educacional e, portanto, em harmonia com as entidades formais de ensino junto às quais buscará seus estagiários, a sistematização de objetivos, metas e estratégias comuns para o desenvolvimento de tal aprendizagem.
A relação advogado e estagiário espelha a relação professor e aluno em outro ambiente, um contexto menos teórico e mais prático.
Mas quais são as ideias fundamentais comuns entre nosso escritório e as instituições de ensino para que possamos exercer, com elas, um papel coordenado e harmônico no processo de aprendizagem que se dá através do estágio do estágio acadêmico?
Quais são as “matérias” que deverão ser trabalhadas com o estagiário através da orientação das tarefas e do compartilhamento do espaço e da dinâmica que se dá no escritório de advocacia?
Em outras palavras: Qual é o nosso projeto? Qual será o nosso currículo?
Precisamos de uma visão comum, supra institucional, que esteja presente tanto na instituição de ensino quanto no escritório de advocacia. Ouso dizer que esta visão comum deva ser a de que profissional buscamos formar, lastrada, ontologicamente, no conceito do que entendemos por “Direito”. Vejo que, para além do Direito e da Educação já alçamos voo, mesmo que pequeno para a dimensão filosófica que deveria alicerçar os saberes jurídicos e a atividade profissional no mundo do Direito.
Consideremos que o eminente Professor Celso dos Santos Vasconcellos que já foi professor, coordenador pedagógico e gestor escolar afirma[5], de que um currículo deve ser, antes de tudo, o encontro dos currículos pessoais dos alunos com os currículos pessoais dos professores e, assim, também em um Projeto Político Pedagógico do escritório para o Estágio de Direito, os objetos de estudo e aprendizado a serem desenvolvidos através da experiência prática no mundo do trabalho devem ser encontro de objetos e objetivos de aprendizado de estagiários discentes e profissionais supervisores que fazem, naquele ambiente de estágio, papel de docentes.
A situação atual, porém, não demonstra que estejam, na forma acima descrita, desenvolvidos harmônica e integradamente os Projetos Políticos Pedagógicos, nem dos cursos de Direito, quanto mais dos estabelecimentos nos quais os discentes farão seus estágios profissionais.
Para buscar preencher, mesmo que parcialmente, essa lacuna, no ano anterior à pandemia procurávamos, no escritório COMUNELLO, ROHDEN & ADVOGADOS ASSOCIADOS, que mantém com a FUNDAÇÃO IRMÃO JOSÉ OTÃO contrato de disponibilização de vagas de estágio para discentes da Escola de Direito da PUCRS, elaborar, em conjunto com os profissionais daquele estabelecimento, em harmonia com o PPC (Projeto Pedagógico do Curso) e com o PDI (Projeto de Desenvolvimento Institucional) da Universidade, um PPPED (Projeto Político Pedagógico para Estágio de Direito) a ser aplicado aos estágios realizados na sociedade de advogados em questão.
A existência e aplicação de um PPPED (Projeto Político Pedagógico para Estágio de Direito) construído pelos profissionais da entidade onde se desenvolverá o estágio em harmonia com o PPC (Projeto Pedagógico de Curso) da Escola de Direito da PUCRS será, com certeza, instrumento que dará efetividade ao papel de relevância do escritório de advocacia no processo de aprendizado de “seus” estagiários, reforçando o ambiente de estágio como ambiente educativo, afastando, cada vez mais, o perigo de que seja ele entendido e vivenciado como uma espécie de relação de emprego “disfarçada”.
Entendemos que qualquer escritório de advocacia que contar com um PPPED (Projeto Político Pedagógico para Estágio de Direito) poderá, de posse de ferramentas teóricas para alimentar a atuação do profissional orientador do estágio, ter melhores condições de cumprir o seu papel na formação humana e jurídica do futuro profissional, bem como de poder utilizar-se de tais resultados para eventual seleção de profissional para os quadros de advogado júnior ou trainee após a colação de grau.
Não obstante, surge a dúvida: por que, afinal, parece ser raro ou mesmo inexistente a elaboração de PPPED (Projeto Político Pedagógico para Estágio de Direito) nos escritórios de advocacia, mesmo sendo comum a manutenção de estagiários de Direito em suas equipes? A resposta a este questionamento é incerta.
Podemos, porém, cogitar, que, provavelmente, os escritórios de advocacia, como instituição, mesmo que através de seus advogados, não estejam “conscientes” de seu papel no processo de aprendizagem desenvolvido no estágio acadêmico ou que entendam o planejamento e acompanhamento deste processo como algo de responsabilidade exclusiva da Instituição de Ensino ou da entidade intermediadora dos estágios.
Outra razão para essa lacuna, podemos pensar, seja o custo de elaboração do PPPED (Projeto Político Pedagógico para Estágio de Direito) por algum de seus profissionais ou, talvez, o entendimento de que, para elaborá-lo, seja necessária a contratação de profissional especialista em Educação, a medida que é rara essa formação complementar no que tange a profissionais advogados.
Infelizmente, devido à pandemia de 2020 que já se arrasta 2021 adentro, fomos forçados a suspender os planos de elaboração do PPPED (Projeto Político Pedagógico de Estágio de Direito) de nosso escritório mas nos mantemos firmes na ideia de que o papel do escritório de advocacia que oferece vagas de estágio acadêmico é um papel eminentemente educacional e, como tal, deve estar integrado com as demais instituições que legalmente são previstas como necessárias para o desenvolvimento do estágio (Instituição de Ensino e, em certos casos, Instituição Intermediária, como o CIEE – no caso de estágios de ensino médio - ou a Fundação Irmão José Otão no caso de estagiários da PUCRS).
[1] BRASIL. Lei nº 11.788/2018, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes, Brasília, DF, setembro, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11788.htm. Acesso em: 18/08/2020. [2] _______ [3] BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES n º 5/2018. Diário Oficial da União, Brasília, 18 de dezembro de 2018, Seção 1, p. 122. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=104111-rces005-18&category_slug=dezembro-2018-pdf&Itemid=30192> . Acesso em: 5 out. 2020. [4] RAMALHO, A.G. A Cultura Jurídica como Referência na Construção das Dimensões Pedagógicas do Ensino Jurídico: contribuição do saber multicultura como processo transdisciplinar. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal da Paraíba - UFPB. João Pessoa. p 177 e 178. 2014. [5] VASCONCELLOS, C. S. Currículo: A Atividade Humana como Princípio Educativo. São Paulo: Libertad, 2011.




Comentários